quarta-feira, janeiro 18, 2006

Ar.d.ida




Onde foram parar todos aqueles cachecóis? Eram dúzias deles. De todas as cores e medidas, empilhavam as barracas dos camelôs que ocupavam boa parte da larga calçada.

Hoje não vira nenhum por lá. Ainda era dia. O termômetro registrava 34°C. Havia menos colorido na avenida e, antes que chegasse em casa, o Sol já teria se posto.


Embora o calor do concreto aquecesse seu sangue a cada passo que dava, a brisa dissipava idéias pessimistas que atormentavam sua mente. Memórias e sentimentos antigos. Medo. Culpa...dúvidas e certezas à beira da ebulição, da alucinação.

Temia uma recaída. Suportaria a quentura do asfalto, a asfixia da poluição, mas de modo algum novamente arrancaria seu coração e o atiraria para longe. Continuaria buscando, codificando...

Desejava gelo, frio, neve, algo que desacelerasse o ritmo elétrico de seus pensamentos. Queria esfriar o sangue; abrandar o coração ardido. Desejava proteger-se de si mesma. Temia que a felicidade que mal chegava, já tivesse ido embora. Complicava um bocado sua simples vida.

A mesma história parecia se repetir, de tempos em tempos. Sempre que pensava ter achado as certezas, vinham as brumas e dissipavam o caminho. Talvez fosse um sinal para ficar atenta. Talvez fosse uma brincadeira do destino. Talvez nada fosse...

Por que era tão difícil ser simples? Por que felicidade implicava em sofrimento? Estava exausta de tantos questionamentos, de tantas lucubrações, de tanta ausência de respostas, de tantas vindas e idas...

Compreendeu que a única resposta para todas dúvidas e interrogações era a simplicidade. E esta só poderia ser encontrada nela mesma. E nada, nem ninguém, nem mesmo uma incrível sandália nova completaria o que lhe faltava. Ela era completa sozinha. Jamais poderia esquecer isso. Jamais poderia perder seu foco novamente.



terça-feira, janeiro 03, 2006

Sede



É certo que afogou-se voluntariamente num perigoso rio, em março de 1941. Vestia um puído casaco de pele, botas e chapéu. Porém, antes da angustiante asfixia do líquido, sentiu o peso do casaco encharcado. Virgínia Woolf tinha 59 anos quando morreu. Não parece que a água tenha sido importante em sua obra, mas certamente fora em sua morte.
....


Tinha a sensação de carregar no vestido negro o peso da água que cobria ruas e calçadas. Quantas horas seriam suficientes para secar a roupa? Enquanto esperava a chuva ceder, relembrou o filme que assistira há alguns dias. Não imaginava que a intimidade com os líquidos fosse a continuação das histórias de Michael Cunningham.
...

Era 31 de dezembro. Tivera uma tarde seminal. Irônico começo para o último dia do ano. Tal a terra sedenta pela chuva, recebeu afetuosamente o suor, a saliva, o sêmen.
De madrugada a chuva brindou o novo ano. Purificou a alma. Dissimulou lágrimas de alegria e saudade. Anunciou um caminho sem peso, sem pressa... Terra e folhas úmidas sugeriram um novo ciclo. Acariciaram pés descalços. Permitiram que pisasse no sonho sem medo de feri-lo e sem receio de ferir-se.
Na manhã seguinte, o sangue inoportuno mostrou a necessidade de tempo para assimilação. O líquido escarlate indicou vida. E o devaneio de voltar ao útero materno significou renascimento, crescimento, transformação...
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Novamente chuva, lágrimas, líquidos...
Ida e volta...
Começo e recomeço...
Ciclo...novo...sempre...possível...